Forma inusitada de vender revistinhas em quadrinho
no trânsito de Belo Horizonte deu fama ao personagem Celton, criado para
proteger a cidade.
O
silêncio da noite é interrompido pelas sirenes policiais que soam
distante. Nem sempre é possível saber o que movimenta a noite em Belo
Horizonte. A única certeza é a de que, independentemente da
circunstância, a cidade pode dormir tranquila. Afinal, o super-herói dos
quase três milhões de moradores da capital está sempre pronto para nos
defender. Seu nome é Celton.
Ele já foi cientista e até se chamou Homem-Felino. Mas, hoje, o
protagonista das grandes missões na metrópole de "Bêlo City" é um
mecânico cujos poderes, impressionante força física e velocidade acima
do normal, ficam em segundo plano. Diferente dos heróis comuns, Celton
evita confusões e, com toda a cordialidade que sua origem mineira lhe
proporciona, procura sempre as melhores soluções para os problemas que
atormentam os seus protegidos.
Celton também é Lacarmélio. Seu uniforme extravagante, na maioria das
vezes um terno amarelo, chama a atenção de todos que conseguem flagrá-lo
no trânsito engarrafado. O bravo guerreiro está sempre com sua bandeira
empunhada. Nos dizeres do estandarte, letras garrafais anunciam sua
causa: “Estou vendendo as revistinhas que eu mesmo fiz. R$ 2,00”. E,
assim, criador e criatura confundem a própria história. Ou seria
estória?
Aos seis anos de idade, o menino nascido em Inhapim, região leste de
Minas, já dava sinais de sua paixão pelas histórias em quadrinhos.
Morava em Itabirinha de Mantena quando a família decidiu se mudar para a
capital. Aos 13 anos já trabalhava como vendedor de mexerica. Foi ainda
engraxate e, aos poucos, despertava o dom de conquistar os clientes nas
ruas – entre um sapato lustrado e outro, o adolescente apresentava um
personagem criado por ele mesmo. Os desenhos ganhavam mais sentido e
expressão a cada roteiro produzido. Até que chegou o momento em que
Lacarmélio sentiu que estava na hora de dar mais visibilidade ao seu
herói.
Nenhuma editora quis apostar nas aventuras de Celton, nem mesmo em São
Paulo. Certo de que poderia emplacar suas histórias, tentou a produção
independente e convenceu a mãe a pegar um empréstimo no banco para
financiar seu sonho. No entanto, as vendas da publicação nas bancas da
cidade não foram suficientes. Foi quando resolveu investir naquele
talento despertado lá na adolescência e passou, ele mesmo, a vender suas
produções. Mas dividir essa jornada com o trabalho nas gráficas, foi a
Kriptonita(Superman) do persistente sonhador. E ele deixou o País, em
direção aos Estados Unidos, a terra da livre iniciativa.
Os seis meses em Nova Iorque foram longos, mas determinantes para a
mudança que ocorreria na trajetória desse brasileiro. “Certo dia, parei
numa banca de revistas e vi vários heróis nos quadrinhos. Cada um deles
representava, de certa forma, o lugar onde morava. E pensei: quem
representa minha cidade, meu país?”. Quando voltou ao Brasil, trouxe na
bagagem a ideia de lançar seu trabalho no cenário da linda Belo
Horizonte.
Celton então ganhou mais que uma causa, conquistou leitores. Resultado
de um imenso levantamento sobre a região metropolitana, o herói
brasileiro se tornou um típico belo-horizontino. Seus surpreendentes
desafios se passavam agora na Avenida Afonso Pena, Praça Sete, Mineirão,
etc. Quem comprava a revista levava, também, um pouco da história da
cidade com suas peculiaridades e folclores. Até mesmo lendas urbanas,
como "Loira do Bonfim" e "Capeta do Vilarinho", ficaram ainda mais
atraentes para o imaginário público depois que receberam os traços de
Lacarmélio e a participação de Celton. Há quem pense até que assim
surgiram essas estórias. O fato é que o suspense em torno delas na
capital mineira gera burburinhos, que sobrevivem há muitas gerações.
Bendita Sogra
Quem
desenha, escreve, produz e vende a revistinha mais famosa de BH é o
próprio autor, Lacarmélio Alfêo de Araújo. A cada dois meses, uma
tiragem de 20 mil exemplares sai da gráfica para ser vendida
integralmente nas ruas, mais precisamente, nas filas de carros presos em
engarrafamentos dos diferentes cantos da cidade. Motoristas de táxi, de
ônibus ou de carros particulares, motociclistas, pedestres,
passageiroseguardas, todos são clientes da “loja” de Lacarmélio, chamada
Trânsito Lento. Algumas edições logicamente fazem mais sucesso que
outras. E, por isso, são publicadas novamente.
Um roteiro de HQ que narra acontecimentos envolvendo uma sogra, há
muito tempo guardado na gaveta, deixou o herói mineiro impressionado.
"Eu sempre quis publicar essa revistinha, mas minha mulher, Cássia,
discordava. Achava que seria um fracasso uma edição que chamasse "A
Sogra Maldita". Mas resolvi arriscar e, no primeiro dia, voltei pra casa
com mil reais no bolso. Cássia teve que reconhecer que eu havia
acertado", conta.
O contato direto com o público, as opiniões que ouve e as reações das
pessoas nas ruas ajudam no desenvolvimento das aventuras. Tantas outras
foram criadas quando o tema de sucesso voltou. Dessa vez,era "O Combate
da Sogra com o Capeta", que ultrapassou 45 mil exemplares vendidos. Essa
publicação não teve a interferência da esposa, que é quem administra a
renda da família. Os cálculos feitos pela mãe do pequeno Pedro ajudaram o
marido a fazer do sonho mais que um complemento financeiro – graças às
revistinhas vendidas no trânsito a família vive hoje em um confortável
apartamento próprio.
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